ALAN


Um homem de chapéu escreve. Um outro observa. A puta dança pela sala fazendo soar o seu corpo contra os objectos. Um isqueiro que não funciona. As pernas da mulher movem-se muito lentamente. Os sapatos são vermelhos. Ela está em cima da mesa. Ele olha-a sorrindo. Ela despe-se e chora. Um homem toma conta de outro homem. O rapaz não consegue olhar em frente. Dois cães ladram e acasalam. Três pessoas paradas, quase imóveis. Outras três, muito bêbedas, procuram acertar o passo. Uma voz dentro de um copo vazio. Alguém ameaça matar-se. Alguém acaba por morrer. Alguém morto deambula pelos lugares. Alguém vivo espera como se estivesse morto. As canções de embalar ao ouvido do atormentado. Ela sabe bem o que quer. Ele não consegue dizer o que sente. Os objectos, os vestidos, os cigarros e o vinho. A cadeira vazia. A boca sem voz. Os pequenos passos descalços. O som das moedas no chão. As memórias que se encontram nos bolsos. O inferno por cima. Deus por baixo.

O universo de Tom Waits – as suas músicas, as suas palavras e, acima de tudo, as suas personagens – é o ponto de partida para o espectáculo que o TUP agora leva a cena. Alimentados pelo génio inconfundível de Waits, vertemos as nossas próprias histórias na construção de um trabalho que, não sendo um tributo ao músico, é uma visão dos seus fantasmas, dos locais que habitam e das suas emoções.

















Ficha Artística

Encenação e Dramaturgia: António Júlio
Figurinos: Rute Moreda
Desenho de Luz: José Nuno Lima (Visualight)
Espaço Cénico: Rute Moreda, António Júlio
Interpretação: Anabela Sousa, Daniel Viana, Emanuel Santos, Inês Gregório, Miguel Lemos, Nuno Matos, Teresa Queirós.
Textos: Anabela Sousa, Daniel Viana, Emanuel Santos, Inês Gregório, Miguel Lemos, Nuno Matos, Teresa Queirós, António Júlio e Tom Waits.
Percussão: Francisco Quaresma

Direcção/Coordenação/Montagem: Visualight Espectáculos Lda.
Operação de Luz: Silvana Alves (Visualight)
Operação de Som: Eduardo Abdala (Visualight)
Apoio Técnico: Eduardo Brandão

Construção: Emanuel Santos
Design Gráfico: Emanuel Santos

Direcção de Produção: Gonçalo Gregório/TUP

Prémio FATAL - Melhor Espectáculo 2010


Alan

TUP / António Júlio

Diz-se muitas vezes que nossos braços são muito curtos para abraçar um universo. Diante disto, tentar abraçar um universo e ainda por cima dar sua própria versão acerca dele se configura enquanto um risco ainda maior. Felizmente tal risco foi tomado neste espectáculo onde a “universalidade das músicas, das letras e das personagens criadas por Tom Waits” foram concretizadas tomando em consideração a participação de cada individualidade envolvida neste processo, e este caminho criativo cada vez mais experimentado no atual contexto teatral foi verificado em cena: a passagem do universo macro para o elemento colectivo/particular foi explorada envolvendo adequadamente as diferentes linguagens utilizadas para compor as “idas e vindas, caminhos, intrigas”, que compõem um verdadeiro “dis-cursus” (apud Barthes 2007: XVIII).

Assumir riscos é quase que inevitavelmente tentar quebrar tabus, sobretudo nos dias atuais onde isto é tentado desesperadamente, tranformando-se em algo banal. Transgredir tabus de maneira consistente é sinónimo de coragem. “Theatre is dealing with it [transgression of taboos] all the time” (apud Lehmann 2006: 186). Quem disse que caixas de sons velhas não produzem bons sons? Quem disse que combinações de velhos caixotes e algumas cordas não podem se transformar em uma guitarra? Quem disse que em um mesmo espaço não se pode encontrar anjos e demónios juntos, por vezes bons, por vezes maus? Depende da abertura de espírito de quem pretende dar um sentido diferente às coisas, mesmo que o resultado seja imperfeito, o que atesta ainda mais a singularidade do objecto. Tudo isto é possível, assim como, no universo teatral, nossos braços tem o tamanho que nós quisermos.

(comentário do júri na atribuição do prémio)